domingo, 28 de setembro de 2014

101 anos de Vida, Trabalho e Fé

Avelina Villa Verde de Paula
(
Y14.8.1913 - U18.9.2014)

Minha avó, Avelina, sempre foi uma amante da natureza. Extraía de situações aparentemente corriqueiras lições de vida motivos felicidade, gritos de alegria, expressões de louvor ao Criador.
 
O nascer do sol alimentava diuturnamente a sua esperança, sua vontade de viver. Uma lua cheia enternecia o seu espírito, remetia-a ao intangível. Ficava contando os dias para que viesse essa fase da lua, tentando ver o momento exato em que o primeiro raio do astro prateado apareceria no horizonte. Imagina quantas luas ela contemplou ao longo desses 101 anos? 

Das muitas histórias que eu poderia contar, lembro-me de uma em particular que ocorreu alguns anos atrás. Laudicene e eu a levamos em uma exposição de flores na sede da Embrapa, lá em Brasília. Eram dois galpões cheios de plantas das mais variadas: flores, espécies ornamentais, objetos para jardinagem, tudo o que ela mais gostava. Aqui e ali, uma de suas expressões exageradas de surpresa: Nossa! Que coisa mais linda! Ah não, aquela ali de tão bonita até abusa! 

Cansada, achamos um banco para nos assentar e relaxar um pouquinho. Bem em frente havia um stand de uma floricultura que fazia arranjos para eventos. Flores cortadas, rosas comuns (existe rosa comum?), coisa que eu sem muito caso desprezei diante de tanta planta viva, de tantas espécies raras. 

O arranjo principal era uma obra colossal. Um pórtico de uns três metros de altura, todo ornado com rosas vermelho-encarnadas, uma proposta para um casamento, para uma noiva vestida de branco adentrar a cerimônia. (já começo a ver aqui alegorias de uma realidade bem maior, intangível, porém real). 

Depois de uma atenta contemplação, ela, vovó, chamou a minha atenção para o que via e para o que antevia: Serginho, que coisa mais linda! Fico pensando que se isso aqui já é tão bonito, imagina no céu, que coisa maravilhosa será?
 
_ É mesmo, vó. Disse eu ainda displicente, quase desinteressado, somente de corpo presente. 

Ela emendou: _ Imagina o Geraldo na hora que chegou lá e pode ver toda aquela maravilha! Tantos anos sem enxergar nada e de repente ver aquilo tudo! 

(Opa! É melhor eu sintonizar. Ela está enxergando algo que eu não estou vendo.) 

Tio Geraldo era um irmão de meu avô. Deficiente visual desde a adolescência, que passou toda a vida, até a velhice, em completa cegueira. Trabalhou, casou-se, criou um filho, venceu na vida, mas lutava diariamente com a sua deficiência. Jamais poderia contemplar em sua existência terrena a beleza que estava diante de nossos olhos. 

_ E o Gustin, imagina! A vida inteira preso na sua inocência, na sua falta de entendimento. A vida toda dependente. Podia até ser manipulado, ser maltratado pelos outros. Já pensou chegar lá no céu e poder entender tudo, liberto afinal? Que felicidade! 

Agora, ela lembrava o tio Augustinho, ou Gustin, um de seus irmãos. Mentalmente incapaz devido a uma meningite, que o acometeu ainda bebê. Viveu a vida toda (também até a velhice) dependente de seus cuidadores, primeiro os pais, depois os irmãos. 

Como ela podia olhando para aquelas rosas, “simples” obras do Criador, imaginar tanto da glória por vir, da realidade celestial, do momento restaurador de retorno da alma machucada, alquebrada a uma existência plena? Ao passo que eu estava ali, com um corpo mais forte, com olhos melhores, com uma mente possivelmente mais ágil do que a dela e não podia ver nada daquilo? Seria por eu ainda ser novo, ainda um consumidor esperançoso ou iludido dos prazeres transitórios? 

De certa forma, eu estava como os tios Geraldo e Augustinho. Cego para enxergar algo além do palpável, daquilo que as três dimensões podiam descrever; com a mente pequenininha, onde só cabem dados e ciência, onde o transcendente e a eternidade com dificuldade encontram algum espaço. 

Interessante notar que ela tirou de sua experiência de relacionamentos dois casos que foram paradigmas do ministério de Jesus relatado nos evangelhos. Obliterados da vista e da mente; gente que tinha olhos, mas não via, que tinha ouvidos, mas não ouvia; cativos das trevas da visão ou do entendimento, foram milagrosamente restaurados nos encontros com Jesus. 

Deixando as reflexões, quero voltar para a minha avó, para o que vi, observei e entendi naquele momento. 

Ela estava ali quase estática, contemplando as obras do Criador e antevendo a glória celestial. Discernindo acuradamente o poder restaurador experimentado pelos tios Geraldo e Augustinho quando se reencontraram com Jesus. Havia uma expectativa de também lá chegar que eu podia constatar na expressão de seu rosto, em sua fala quase suspirada, na cadência e no alongar das vogais: I-ma-gi-na! I-ma-gi-na só, Serginho! 

Agora, para a vovó, que tão ansiosamente imaginava, não resta mais distância entre ela e seu Senhor, o reencontro já é realidade.

Sergio Cerqueira, 20.9.2014