Avelina Villa Verde de Paula (Y14.8.1913 - U18.9.2014) |
Minha avó, Avelina, sempre foi uma amante da natureza. Extraía de
situações aparentemente corriqueiras lições de vida motivos felicidade, gritos
de alegria, expressões de louvor ao Criador.
O nascer do sol alimentava diuturnamente a sua esperança, sua vontade de
viver. Uma lua cheia enternecia o seu espírito, remetia-a ao intangível. Ficava
contando os dias para que viesse essa fase da lua, tentando ver o momento exato
em que o primeiro raio do astro prateado apareceria no horizonte. Imagina
quantas luas ela contemplou ao longo desses 101 anos?
Das muitas histórias que eu poderia contar, lembro-me de uma em
particular que ocorreu alguns anos atrás. Laudicene e eu a levamos em uma
exposição de flores na sede da Embrapa, lá em Brasília. Eram dois galpões
cheios de plantas das mais variadas: flores, espécies ornamentais, objetos para
jardinagem, tudo o que ela mais gostava. Aqui e ali, uma de suas expressões exageradas
de surpresa: Nossa! Que coisa mais linda! Ah não, aquela ali de tão bonita até
abusa!
Cansada, achamos um banco para nos assentar e relaxar um pouquinho. Bem
em frente havia um stand de uma floricultura que fazia arranjos para
eventos. Flores cortadas, rosas comuns (existe rosa comum?), coisa que
eu sem muito caso desprezei diante de tanta planta viva, de tantas espécies
raras.
O arranjo principal era uma obra colossal. Um pórtico de uns três metros
de altura, todo ornado com rosas vermelho-encarnadas, uma proposta para um
casamento, para uma noiva vestida de branco adentrar a cerimônia. (já começo
a ver aqui alegorias de uma realidade bem maior, intangível, porém real).
Depois de uma atenta contemplação, ela, vovó, chamou a minha atenção
para o que via e para o que antevia: Serginho, que coisa mais linda! Fico
pensando que se isso aqui já é tão bonito, imagina no céu, que coisa
maravilhosa será?
_ É mesmo, vó. Disse eu ainda displicente, quase desinteressado, somente
de corpo presente.
Ela emendou: _ Imagina o Geraldo na hora que chegou lá e pode ver toda
aquela maravilha! Tantos anos sem enxergar nada e de repente ver aquilo tudo!
(Opa! É melhor eu sintonizar. Ela está enxergando algo que eu não estou
vendo.)
Tio Geraldo era um irmão de meu avô. Deficiente visual desde a
adolescência, que passou toda a vida, até a velhice, em completa cegueira.
Trabalhou, casou-se, criou um filho, venceu na vida, mas lutava diariamente com
a sua deficiência. Jamais poderia contemplar em sua existência terrena a beleza
que estava diante de nossos olhos.
_ E o Gustin, imagina! A vida inteira preso na sua inocência, na sua
falta de entendimento. A vida toda dependente. Podia até ser manipulado, ser
maltratado pelos outros. Já pensou chegar lá no céu e poder entender tudo,
liberto afinal? Que felicidade!
Agora, ela lembrava o tio Augustinho, ou Gustin, um de seus irmãos.
Mentalmente incapaz devido a uma meningite, que o acometeu ainda bebê. Viveu a
vida toda (também até a velhice) dependente de seus cuidadores, primeiro os
pais, depois os irmãos.
Como ela podia olhando para aquelas rosas, “simples” obras do Criador,
imaginar tanto da glória por vir, da realidade celestial, do momento
restaurador de retorno da alma machucada, alquebrada a uma existência plena? Ao
passo que eu estava ali, com um corpo mais forte, com olhos melhores, com uma
mente possivelmente mais ágil do que a dela e não podia ver nada daquilo? Seria
por eu ainda ser novo, ainda um consumidor esperançoso ou iludido dos prazeres
transitórios?
De certa forma, eu estava como os tios Geraldo e Augustinho. Cego para
enxergar algo além do palpável, daquilo que as três dimensões podiam descrever;
com a mente pequenininha, onde só cabem dados e ciência, onde o transcendente e
a eternidade com dificuldade encontram algum espaço.
Interessante notar que ela tirou de sua experiência de relacionamentos
dois casos que foram paradigmas do ministério de Jesus relatado nos evangelhos.
Obliterados da vista e da mente; gente que tinha olhos, mas não via, que tinha
ouvidos, mas não ouvia; cativos das trevas da visão ou do entendimento, foram
milagrosamente restaurados nos encontros com Jesus.
Deixando as reflexões, quero voltar para a minha avó, para o que vi,
observei e entendi naquele momento.
Ela estava ali quase estática, contemplando as obras do Criador e
antevendo a glória celestial. Discernindo acuradamente o poder restaurador
experimentado pelos tios Geraldo e Augustinho quando se reencontraram com
Jesus. Havia uma expectativa de também lá chegar que eu podia constatar na
expressão de seu rosto, em sua fala quase suspirada, na cadência e no alongar
das vogais: I-ma-gi-na! I-ma-gi-na só, Serginho!
Agora, para a vovó, que tão
ansiosamente imaginava, não resta mais distância entre ela e seu Senhor, o
reencontro já é realidade.
Sergio Cerqueira, 20.9.2014